sábado, 9 de abril de 2011

Senti III

Tencionava descansar nestas férias, parar um pouco…reflectir e ao mesmo tempo esquecer tudo o que se passou. Limitar-me a pensar no que se passaria daqui para a frente e esquecer um bocado as coisas que me deitaram abaixo nos últimos tempos. Pôr o passado para trás das costas. Pois, e agora estou aqui, numa situação que eu sei lá lidar…uma rapariga que estava no meio da rua e eu trouxe-a para casa, mas porquê?! O que é que eu hei-de fazer agora? O que é que eu tenho de fazer agora?

Não conseguia deixar de olhar para ela, havia algo nela que me prendia a atenção, completamente. Sentei-me ao seu lado. Ela continuava a comer, não parava um segundo nem para respirar. “como é que te chamas? … tens um nome certo?”, ela não me respondeu, parou de comer, levantou-se e caminhou para a janela. Ficou a olhar lá para fora durante um bom bocado, sem se mexer ou dizer uma palavra que fosse, até que finalmente disse “o meu pai batia na minha mãe e ela não dizia nada, nunca me tinha dito nada, eu é que descobri! Ela limitava-se a ficar calada, nunca disse nada a ninguém…preferia estar calada e apanhar! Sabia bem que ele podia cometer uma qualquer loucura que lhe passasse pela cabeça. Eu não aguentava o que via todos os dias, o que sentia todos os dias…ver a minha mãe ser maltratada, um ser humano tão bom…uma pessoa tão boa (a voz começou a fraquejar) … tão boa…que ia todas as noites ao meu quarto dizer que estava tudo bem, embora nada estivesse bem! Nada estava bem e eu sabia disso”. Definitivamente esta não era a rapariga que estava lá fora, pronta para morrer…comer fez-lhe bem. “isso é…não sei o que dizer! Tenho pena que estejas a dizer isso…ninguém devia passar por uma situação dessas, e acredito que esse homem, essa amostra de gente, ainda há-de pagar por tudo o que vos fez!” “ele já pagou! Pagou bem caro!” “então mas…”, ela desviou o olhar da rua e virou-se para mim bruscamente “ele merecia, ele merecia e mereceu tudo o que lhe aconteceu…tudo! Aquele monstro! Ele não tinha o direito de tratar a minha mãe assim, nem de ter feito o que fez! Não tinha!”, fiquei um pouco assustado com o tom de voz que ela usava e com os olhos que se abriam e mostravam a raiva que ia por aquele coração naquele momento, não era por menos…aquele pai não era um pai, não se podia chamar um pai a uma pessoa que destrói uma família assim! Porque é que ele havia de fazer uma coisa dessas? “foi a gota de água!” “foi a gota de água como assim?” perguntei, “o que ele fez.” “sim, um homem que se considera Homem nunca bate numa mulher” “não é isso! O que ele fez depois de tudo isso!”, estava intrigado, “o que ele fez depois de tudo isso? O quê?” … voltou a dirigir o olhar para a rua, “há uma semana…numa noite como esta, o vento…tal e qual como hoje…não se ouvia mais nada para além do vento…e o nevoeiro…foi nessa noite que…algo que nunca me abandonará…que ficou marcado para sempre…” “o que foi? O que é que viste?”, ela rodou lentamente na minha direcção, “eu vi o meu pai com outra…” … abateu-se um silêncio pelo quarto mais cortante que o vento que assobiava nas telhas da casa. “quando eu pensava que ele já tinha feito tudo…ele faz…isso…” “eu…não sei o que dizer”, e não sabia mesmo, a sensação que tive foi de pura tristeza por aquela rapariga que estava mesmo à minha frente, tão nova ainda para sofrer coisas deste tipo, tão frágil que ela estava naquele momento, talvez mais frágil do que quando a vi lá fora, no meio da noite…mesmo assim continuou a falar, “eu não aguentei, não dava para aguentar…ver aquilo e não fazer nada…almoçar com eles e estar calada como a minha mãe?…a minha mãe que nem desconfiava da outra…e ele, que nem sabia que a tinha visto. Não! Não podia ficar assim, eu tinha de fazer alguma coisa, por mim e pela minha mãe!” “o que é que fizeste?”, notava-se o receio na minha voz, ela aproximou-se de mim, sentou-se na cama e olhou-me com aqueles olhos, “eu não gosto do que fiz, e talvez…ele merecia, a culpa não foi minha, ele sim teve a culpa toda do mundo!”, olhei para ela…o meu coração já estava a fervilhar há muito, mas cada palavra que saía da sua boca deixava-me mais nervoso ainda…estava completamente preso, e de facto, tinha bastante medo do que podia vir aí…”o que é que fizeste?”.

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