sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A vizinha (5)

Ele não estava lá porque já tinha corrido, tendo inclusive tropeçado no décimo primeiro degrau que dava para o 1º andar da casa, atirando-se de seguida para a janela do seu quarto que ficava mesmo virado para a casa que recebia visitas novas naquele dia.
A casa era enorme e já há uns bons anos que estava para venda, pudera, um casarão daqueles ainda devia custar um dinheirinho valente...aquela família tinha de ser bem rica.
Ele viu-a dar a olhadela ao jardim no sítio onde ele acabara de desaparecer..depois entrou..e ele ficou por uns momentos a olhar para o céu lindo que parecia trazer novidades...e que novidades.
Atirou-se para a cama..ficou algum tempo a olhar para o tecto azul que contrasteava com o céu lá fora e sorriu sem saber bem porquê.
Pareceu ter acordado de um sonho longínquo e demasiadamente longo quando ouviu os camiões a acordar na rua...deu um salto que o meteu de imediato colado à janela e conseguiu ver os "pais" a acenarem às enormes dispensas rolantes que se afastavam dali...mas ela não andava por ali..
Quando vasculhava tudo quanto era sítio com o olhar recuou a cabeça para trás quando reparou que um par de olhos cintilantes e esverdeados o olhavam da janela no primeiro andar...era ela...ele atirou-se para o chão de uma maneira muito disparatada mas sabia muito bem que ela o tinha visto...depois começou a bater com a cabeça na parede gelada...."pera..pera aí? A minha guitarra?!"

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A vizinha (4)

Por momentos ainda pensou que "aquilo" que tinha acabado de sair do carro era uma luz qualquer que lhe queimava os olhos, teve o impulso imediato de colocar a mão direita na testa para ter a certeza de que o sol não lhe estava a trocar as voltas.
Nunca na vida pensara que ninguém escapasse impune quando lhe riscavam a guitarra ou quando batiam com ela em algum lado...mas ele parecia nem ter notado que acabara de a largar no meio do jardim...
O homem e a mulher mais velhos falavam com os senhores que tinham descarregado tudo para fora dos camiões..estava na hora de carregar tudo para os devidos lugares no interior da casa. Todos se começaram a dirigir para a porta principal..à excepção da rapariga que tinha acabado de sair do carro e que olhava para toda aquela situação com uma cara enojada...Rafael ficou a olhar para ela.
Tinha uma franja loira que lhe caía mesmo por cima do olhos mais verdes e mais bonitos que ele alguma vez tinha visto. Mascava freneticamente uma pastilha elástica enquanto mexia no mp4 e ajeitava os fones enormes nos ouvidos...parecia ter a mesma idade dele...aquela roupa...bem, digamos que era difícil não olhar para aqueles mini-calções ou para aquela t-shirt dos Ramones *.*
Ela parecia um tanto perdida, olhava em todas as direcções sem estar muito tempo a olhar para o mesmo sítio...já todos tinham entrado na casa quando ela ainda estava à beira do carro, agarrada ao mp4.
De repente olhou para a casa de Rafael e ele conseguiu ver os olhos dela varrerem a casa de uma ponta à outra...até chegar a ele.....ficou mais tempo a olhar para ele do que para todas as outras coisas...ele engoliu em seco, mas não conseguia desviar o olhar.
Passado uma beca ela voltou a enterrar-se no mp4 e começou a andar, muito vagarosamente, para a porta principal...antes de entrar para dentro olhou de novo para o jardim de Rafael...mas ele já não estava lá.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A vizinha (3)

Ele saiu de casa e acompanhou a irmã à escola.
Pelo caminho foi-lhe explicando as mil e uma razões que tinha para que ela não ouvisse Justin Bieber e que se concentrasse mais em Radiohead e Blur..ela acenava a cabeça em sinal afirmativo mas dois minutos depois lá começava a cantarolar "Béby Béby Bébi ó!" ou "Ai se eu ti pégo! Ai Ai..."..ele sabia que um dia ainda lhe conseguiria dar a volta.
Depois de a deixar na escola voltou para casa..não tinha nada para fazer, estas seriam umas mini-férias em que o computador iria fazer o máximo para que ele se mantivesse minimamente entretido..
O calor daquele dia parecia não dar sinais de diminuir e já há alguns meses que as chuvas não deixavam o sol respirar por um segundo que fosse..era bom sentir aquele calor a bater-lhe na cara..
Chegou a casa, atirou-se novamente para a cama mas pensou que aquele dia não lhe podia desaparecer por entre os dedos..pegou na guitarra e foi para o jardim..mal abriu a porta o calor inundou-lhe o corpo e uma sensação reforçada de contentamento atingiu-o como um raio. Caminhou para o jardim e sentou-se no meio de todas aquelas ervas e flores e cenas que já estavam na altura de serem cortadas...
Já estava há algum tempo a dedilhar as cordas de ferro da acústica quando viu um camião aproximar-se..a rua tinha estado deserta até então, por isso ver um camião gigantesco a aproximar-se, com outro atrás...era ruído e movimento a mais. Levantou-se e olhou melhor para a confusão que lá vinha.
Os camiões aproximavam-se cada vez mais da casa dele e, quando Rafael deu por si, estava com dois camiões a taparem-lhe o sol...ficou a ver a cena a uns metros de distância e só depois se apercebeu que, possivelmente, alguém tinha a comprado a casa que estava para venda...mesmo em frente à sua.
Quatro homens, dois de cada camião, começaram a descarregar as coisas todas..móveis, tapeçarias...e só uns bons trinta minutos depois é que conseguiram tirar tudo lá de dentro...quando estavam mesmo a tirar o último cadeirão surgiu um carro no fundo da rua...deviam ser os proprietários.
O carro parou.
Saiu uma mulher...e depois um homem...pareciam ter a idade dos pais dele ...mas, tinha saído mais alguém...a guitarra caiu no meio de todas aquelas ervas e flores e cenas que já estavam na altura de serem cortadas...

domingo, 22 de janeiro de 2012

A vizinha (2)

O pesadelo abalara-o por uns momentos mas quando dirigiu o olhar já habituado à luz carregada que se ia cravando na cara sorriu ao ver que o dia estava lindo. O sol preenchia de luz um céu limpo de Janeiro que lhe deu uma enorme sensação de alegria.
Passou a mão pelo cabelo já tão habituado a não ser penteado, levantou-se num pulo da cama e sentiu uma ligeira tontura que lhe passou de imediato...realmente a mãe tinha razão, já era quase uma da tarde...desceu as escadas que davam para o rés do chão e caminhou até à casa de banho a cambalear, quem não soubesse confundi-lo-ia por um zombie com toda a facilidade.
Depois foi para a cozinha onde já se encontrava a família toda de olhares postos nas notícias mais estúpidas e estapafúrdias que vinham a preencher a televisão nacional há já algum tempo..sentou-se na sua cadeira e bebeu de um trago um copo gigantesco de água.
-Já era hora de acordar não achas? - continuou a mãe que ainda não estava satisfeita com o que começara a dizer há pouco. Rafael pegou num pedaço de pão e começou a mordiscar.
-A tua mãe falou para ti. - disse o pai que não tirava os olhos da televisão.
-Acho - respondeu Rafael de forma demasiadamente evasiva.
-Eu li que "deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer"! - disse do nada a irmã mais nova. Aquele espaço do dente da frente que lhe tinha caído há uns dias dava-lhe um ar adorável.
-E nunca te esqueças disso. - disse Rafael enquanto lhe penteava o cabelo dourado e lhe sorria.
O almoço continuou...mas aqueles dias já não eram os mesmos...a crise, as tretas, os salários...tinham transformado aquela família. Já era raro haver risos quando estavam todos juntos.
António, o pai, sempre carrancudo por trabalhar demais e receber "demenos", 40 anos e só queria partir os cornos a certos meninos e meninas que "governam" o país. Sempre foi uma pessoa feliz e extremamente extrovertida...mas estes tempos não ajudavam...
Laura, a mãe, cada vez mais controladora por saber que os tempos iam apertando...40 anos e só queria dar o máximo aos filhos...garantir o melhor futuro possível.
Rita, a irmã pequenina e adorável que Rafael estava sempre SEMPRE pronto a defender...6 anos mas mais perspicaz do que muitos.
O almoço acabou..o pai e a mãe foram trabalhar...e ele tinha de ir levar a irmã à escola primária que ficava a uns minutos da casa deles...