terça-feira, 25 de outubro de 2016

O espelho

Cai tudo em cima de mim. Caem as dores de mais um dia demoníaco, sem sol e sem chuva e sem nada. E enquanto espero ver a minha sombra lá fora a acenar-me, dou antes por mim a ver o reflexo do espelho do meu quarto, tão parecido comigo mas tão diferente. É a minha cara que me olha, exactamente igual! Como é que...como é que ele está ali se eu estou aqui? Porque eu sei que é normal o reflexo ser igual a mim, com as mesmas feições, com os mesmos movimentos, com o mesmo tudo. Mas, e embora aquele seja eu, aquele não sou eu.

Ele olha-me e basta-me aquele olhar para saber que não sou eu. Aqueles olhos não são iguais aos meus. Têm a mesma cor, têm o mesmo brilho, mas não são os meus. São cansados e metem-me nojo só de olhar para eles. Olhem bem para aquilo. E mexe-se tal e qual como eu me mexo mas parece mais rápido. O meu reflexo, uau...o meu reflexo é mais rápido que eu, ou pelo menos mais rápido que o meu pensamento. Mas sei tão bem que isso é impossível.

Não consigo concentrar-me em mais nada. O dia que desfila fora do meu quarto não me diz nada, não significa nada. Aquele reflexo é tudo, aquele espelho é o meu novo mundo e tem a minha atenção total. Sempre ali esteve, pelo menos desde que me lembro, mas só agora é que ganhou o poder de me intrigar, de me transformar aos poucos. Um pouco mais do que já tenho vaidade de gritar em dias de muito trânsito. Mas mesmo fazendo parte da minha mobília mental há tantos anos, há qualquer coisa de novo em relação àquele novo destaque mortífero da minha mente.

Coço a minha cabeça a escaldar, e ele coça a sua cabeça a escaldar. Mas demora mais tempo a fazê-lo do que eu e, ao aperceber-se que eu notei, sorri para mim...sorri para mim sem eu ter sorrido antes. Não. Aquele não sou eu. Ou será que sou, mas nem sequer me apercebi que acabei de sorrir? Será que tudo não passa de um disfarce criado por mim e eu neste momento sou a pessoa do espelho, enquanto que a pessoa que está neste quarto real é o verdadeiro impostor?

Acho que o melhor é atirar o espelho pela janela. Acabar com isto de uma vez por todas. E o que quer que exista que morra. Quem quer que exista que morra. Porque por muito que me apeteça importar com situações parecidas a esta, a minha paciência esgotou-se ainda antes de me importar.

E ao mesmo tempo que atiro o espelho pela janela, e ainda antes de este se partir em mil bocados frios e humanos, sinto uma pontada na minha alma que me diz, sem qualquer sombra de dúvida, que mal aquele vidro se parta, também eu partirei para sempre.